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João Bocudo - Conto de Neyd Montingelli

06 jul 2020 às 06:53
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- Filó, oi Filó, aqui na cerca. Vamos ao culto hoje? Vai ter coral. Sabe que...
- Espera Jandira, deixa eu fechar aqui que o João Bocudo está espiando a gente, já volto.
Um barulho de veneziana se fechando, xingamentos ininteligíveis e a vizinha volta à janela.
- Fechei. Tem dias que aquele chato está demais. Ele fica com aqueles "zóião” olhando tudo o que a gente faz.
- Eu tenho uma raiva dele! Esses dias ele me parou na rua e perguntou por que eu ficava me abanando e, veja só, por que eu não comprava um ar condicionado para ficar em casa. Eu disse que era pobre e gorda. É um bocó.
- Sabe o que ele me perguntou? Por que eu não comprava uma máquina de lavar roupa, para deixar de lavar tudo no tanque. O homem é louco? Sou lavadeira. Não temos dinheiro nem para cortar o cabelo dos piás...
- Eu acho que ele tem problemas na cabeça. Esses dias pegou o Wellington pelo braço e mandou que ele fosse colocar um tênis. Disse que menino não podia jogar bola descalço. O piá entrou em casa correndo e com medo do monstro. Tênis.... Pois sim. Se eu tivesse dinheiro para comprar tênis para os guris, eu compraria casaco para eles usarem no inverno.
- Olha ali o idiota, está agachado na cerca, escutando a nossa conversa. Está vendo aí?
- Eu vou jogar uma coisa nele. Espera só para ver.
Um pão seco passa voando pela janela da vizinha e cai bem perto do Seu João, que realmente estava escondido entre alguns entulhos na frente das casas.
Seu João, o João Bocudo como o pessoal da pequena vila o chama, mora em uma casa grande de madeira, com um enorme terreno. A única casa com mais de 4 peças na vizinhança pobre. Sempre foi fechado; não tinha parentes; não conversava com ninguém, apenas observava. A casa amarela desbotada e com as janelas caindo precisava de uma reforma urgente, antes de desabar, mas ele não se importava. Vivia a maior parte do tempo perambulando pelas estreitas ruas, olhando e bisbilhotando a casa e a vida dos vizinhos.
Várias vezes foi pego dentro de alguma casa simples, olhando os objetos. Era enxotado e por diversas vezes levou safanões das donas de casa.
O apelido pegou. Todos os chamavam de João Bocudo porque ele tinha mania de ficar perguntando coisas para as pessoas. A última dele foi com o Varleisson, ele queria saber porque o menino era tão feio com aquele cabelo comprido e que ele e os irmãos deveriam ir a um barbeiro. O filho da lavadeira, nem sabia o que responder, pois como uma mulher que só tem o tanque como instrumento de trabalho pode ainda ter dinheiro para levar os 5 meninos no barbeiro?
Apesar da intromissão e chatice do Sr. João, as pessoas da vila não tomavam providências maiores que jogar um pão velho na direção dele. Afinal, todos pensavam:
- Coitado, sozinho, naquela casa podre, deve ser igual a todo mundo aqui: pobre e miserável.
Como ninguém sabia da vida dele, deixavam que fosse vivendo como queria. Apenas a moça da casinha azul conversava com ele. Ela e o marido construíram uma casa de dois cômodos em um pedaço de terreno emprestado. Viviam bem na moradia arrumada e cheia de flores. Só não tinham filhos como os demais casais do local.
Alaíde era simpática com todos e dava aula de dança para as crianças da vila na rua mesmo, pois não tinha local. As crianças e jovens adoravam a meiga professora e com a música bem alta de um aparelho de som ligado a muitos fios, dançavam depois das 5 da tarde até o anoitecer. Mesmo nos dias de chuva, lá estavam as crianças esperando pela professora que ficava entristecida em não poder dar aula na rua.
Alaíde conversava com o Sr. João. Sentavam os dois no banco de madeira construído por um pai de aluno na frente da casa dela. Ela fazia pão com margarina na frigideira e limonada e os dois ficavam muito tempo rindo, falando da vida, do passado dele, do futuro dela ou simplesmente sentados, olhando as estrelas, as pessoas.
Ninguém entendia aquele relacionamento: o homem estranho com a professora certinha.
Um dia, a professora voltava do trabalho e viu um ajuntamento de gente na frente da casa do Sr. João. Foi até lá e contaram que o "João Bocudo morreu, agora vai ficar com a boca cheia de formigas para aprender a não se meter na vida dos outros”.
Alaíde ficou triste. Ela gostava dele e foi no enterro. Só ela de toda a vila.
Ao sair do cemitério, um senhor de terno veio ao seu encontro e pediu que ela comparecesse no cartório do bairro, no dia seguinte às 10 horas, com o marido.
Ela não sabia o que era, mas os dois faltaram ao trabalho e no horário estavam lá. O mesmo senhor de terno os levou a uma grande sala e começou a ler o testamento do Sr. João Ivack.
- Era vontade do Sr. João que a Sra. Alaíde aqui presente fosse declarada sua herdeira, pois não tinha filhos, irmãos ou parentes próximos.
- Eu herdeira do João? Por que?
- Credo Alaíde, se este João é o João Bocudo, então você vai herdar o "zoião” e as perguntas dele. - Falou o marido brincando.
- O Sr. João deixa a propriedade da Vila Palmito para a Sra. Alaíde. Já foi contratada uma construtora para reformar a casa e construir um ginásio ao lado, para aulas de dança, todo montado.
O casal estava perplexo!
- O Sr. João deixa uma conta no banco com esta quantia para a Sra. – E o homem mostra um número cheio de zeros, depositada.
- O Sr. João deixa para a Sra. Lavadeira da vila, já comprados e que serão entregues hoje à tarde, uma máquina de lavar, uma máquina de secar, um ferro industrial e um estoque de produtos para lavar roupa. Também uma conta no barbeiro da vila para que os meninos cortem o cabelo por 2 anos.
- Deixa para a Sra. Jandira, um ar-condicionado, mais uma conta na loja de roupas para comprar tênis, agasalhos e muita roupa para os meninos. Claro, e uma conta aberta no banco onde o valor da conta de luz será debitado todo mês por 2 anos.
E assim foi, para cada morador, ele deixou um presente, aquilo que a pessoa estava precisando. Deixou também a reforma das casas e o calçamento das ruas.

- Era por isso que ele ficava bisbilhotando a nossa vida. Ele queria deixar o seu dinheiro para nós. Acho que agora temos que mudar o nome do João Bocudo para "João Abençoado”. - Falou o marido de Alaíde, pois até ele não gostava do velho João fazendo perguntas. – E você que era a única que gostava do velho traste, ele soube reconhecer e recompensar.
As pessoas da Vila Palmito mudaram. Agora todos se preocupam com os vizinhos e dão atenção aos mais velhos. Serviu a lição.
Bem, tem algum João Bocudo que queira perguntar alguma coisa para mim?

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Neyd Montingelli

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Neyd Montingelli nasceu em Curitiba é casada e tem 4 filhas. Formação em Psicologia, Nutrição e Laticínios. Tem 28 livros solo e participa em 130 antologias. Foi premiada em concursos de contos e poesias. Membro da ALB e ALUBRA/SP, Centro de Letras do Paraná, Núcleo de Letras e Artes de Buenos Aires e Lisboa, Embaixada da Poesia e ALMAS/Ba, AVIPAF, ALB Campos dos Goytacazes. Pelo seu desempenho na Literatura, recebeu troféu Cecília Meireles, Cora Coralina, Federico Garcia Lorca e outros; Medalha Monteiro Lobato; Medalha Melhores Poetas e Troféu Melhor Cronista, Melhor Contista, Menção Honrosa Concurso Paulo Leminski, entre outros. O livro Histórias para todas as crianças foi premiado na Suíça como livro infanto-juvenil 2018


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